A Mega Sena estava acumulada. Não lembro quanto, mas era muito dinheiro. Quando passa de um valor eu perco a noção, milhão ou trilhão para mim é tudo igual. A lotérica ficava bem em frente à Kopenhagen, onde eu tinha parado para um café, numa pausa entre dois compromissos. A fila era grande. Vários tipos de pessoas, unidas por um único olhar esperançoso.
Sem calcular, deixei minhas pernas me levaram até a lotérica.
Entrei na fila e observei as placas, os olhares, as cifras. Comecei a levar a história a sério. Tão sério que tive um rompante de certeza de que seria a ganhadora do prêmio. Tudo conspirou a favor, afinal eu 1) não costumava estar adiantada para compromissos, 2) me sentei, não por acaso, para um café, 3) bem em frente à lotérica, 4) justo na última hora restante para concorrer ao 5) prêmio acumulado. Estava tudo orquestrado. Entendi, naquele momento, o porquê de nunca ter ganho até então sorteios, rifas, vales-brindes: minha cota de sorte estava reservada para aquele grande dia.
Olhei para o relógio e constatei que se eu permanecesse na longa fila chegaria atrasada à reunião. Mas àquela altura não importava mais o cliente novo a ser captado, eu já era uma milionária, ou trilionária, tanto faz. Só restava formalizar a minha nova situação financeira, bastando preencher seis números na cartela.
Comecei pelo básico. Contas pagas em dia, piso de madeira na sala, anel novo no dedo, viagens, carro novo, casa pé na areia, viagens, casa no campo, viagens, casa nova, helicóptero... não demorou para eu voar longe.
Assim que é, quanto mais a gente tem, mais a gente precisa.
Meu lado espiritualizado até tentou frear os desejos, mas eu já estava totalmente tomada. Eu dependia daquele trilhão!
Uma voz me despertou do devaneio com uma pergunta sem importância, típicas daquelas que usamos para jogar conversa fora em longas esperas. Começamos a conversar e logo se juntaram outros vizinhos de fila. Depois de alguns ‘pois és’ resolvemos ser sinceros e diretos, falamos sobre os sonhos de cada um que justificassem enfrentar uma fila tão longa. Trocamos algumas confidências, dessas que só se conta para quem nunca mais nos encontraremos na vida, e soltamos os nossos desejos sem censuras.
A jovem revelou que caso ganhasse o prêmio, iria correndo para trocar suas próteses de silicone com o melhor especialista do país, depois se preocuparia com o que fazer com o resto do dinheiro. O estagiário engravatado prometeu que mandaria o chefe para aquele lugar e montaria seu próprio escritório, onde seria proibido o uso de gravata. A avó, saudosa de seus netos que moravam no interior, disse que realizaria o sonho de comprar uma casa enorme para acolher todos os seus descendentes. Apesar da intimidade lá instaurada e de eu ter contado bastante de mim, tive vergonha de falar sobre o meu helicóptero e fiz o meu discurso a respeito dos meus maiores desejos: PAZ (a casa nova), AMOR (a aliança de brilhantes), SEGURANÇA (o carro novo) e SIMPLICIDADE (a casa pé na areia). Não achei necessário revelar os parênteses.
O rapaz de trás, que tinha uma aparência humilde e sofrida e até então apenas participava da conversa como ouvinte, finalmente se manifestou. Explicou que não era sonho, era necessidade. Disse que SIMPLICIDADE ele já tinha, mas que precisava apenas da SEGURANÇA de ter comida para dar aos filhos. Isso lhe garantiria PAZ e AMOR.
Nos calamos. Sentimos vergonha da nossa nudez. A moça do silicone olhou para o chão e ajeitou o sutiã, a avó pegou o celular para checar as mensagens dos netos, o estagiário alargou a gravata que o sufocava. E eu pagaria aquele trilhão para deletar nossas confidências feitas minutos atrás.
A fila ficou mais lenta e pesada. Finalmente chegou a nossa vez.
Enquanto procurávamos no fundo da bolsa um troco de R$4,50 para pagar a aposta, o rapaz segurava firme na mão uma moeda e duas notas amassadas, como uma fortuna acumulada.
Pegamos as canetas prateadas presas por uma corrente, preenchemos os números e pagamos no guichê.
Não foi necessário combinar com os meus amigos, nossos olhares já haviam se entendido. Fomos todos em direção ao desempregado e lhe entregamos os nossos bilhetes, não sem antes anotar os números apostados.
Na esquina seguinte, joguei o meu papel num cesto de lixo, pois sabia que meu coração não suportaria sentimentos tão bipolares caso soubesse que ele tivesse ganho os meus trilhões.
Não voltei à lotérica depois daquele dia, mas me prometi que na próxima vez irei devidamente preparada para não fazer mais amizades na fila.
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