top of page

OS FELIZES-INFELIZES

Foto do escritor: Becky KorichBecky Korich

23.outubro.2022


Com certeza você conhece essa pessoa. Está sempre com algum problema: dor, saudade, ressentimento, decepção. Passa o dia se equilibrando entre uma mágoa e outra e se agarra a dores - reais ou imaginárias - para escapar do risco de estar bem.

Essa pessoa vive ao contrário: se feliz, sente-se vazia e, quando triste, a vida começa a fazer sentido. Até quando sorri escancara uma dor que finge esconder, mas que no fundo precisa externar. O sofrimento, para ela, é nobre, moralmente superior a qualquer felicidade vulgar.

Na rua, você reconhece de longe. Segura firme a bolsa, se protegendo dos assaltantes que, por certo, a estão perseguindo. Leva consigo um guarda-chuva. Se chove reclama da chuva, se não chove, reclama que carregou inutilmente o guarda-chuva.

Mal você a encontra e ela começa a disparar as suas lamúrias. Narra com detalhes as novas varizes que surgiram na sua perna, até chegar às veias e artérias de seu coração sangrento. Família, vizinhos, chefe, empregados, amigos, todos conspiram contra ela. E para piorar, tem a dor nas juntas, os preços altos, a pouca vergonha na novela das oito. E você percebe: a pessoa sente prazer, se deleita, se regozija com o próprio martírio. Consolar? Jamais! Ela precisa que você se compadeça de sua dor e confirme que a situação é grave, irremediável. Quanto maior a gravidade da situação, mais a pessoa flutua, leve, na gravidade zero dos seus lamentos.

Mesmo nas férias não há descanso na sua fábrica de lamentos. Avião lotado, estrada ruim, comida oleosa, praia quente demais, neve fria demais. Se decepciona com a péssima escolha do lugar, do hotel e da época do ano pra viajar. No restaurante muda os ingredientes do cardápio e sempre se arrepende de não ter pedido o prato do amigo. Nem na sobremesa sua amargura dá trégua: o bolo de chocolate é doce demais, prefere mesmo os sabores amargos.

Para esse amante do sofrimento, psicólogos são todos charlatões, pois não percebem que o problema é do outro, e não dele. Prefere mesmo médicos, aqueles que dão muitos remédios: a prova material do seu sofrimento. Confia mais nos remédios que ardem, porque acredita que para funcionar, precisa doer.

Estes são os infelizes-felizes. E nós não temos o direito de atrapalhar com nossa alegria vulgar.


Publicado na Folha de São Paulo de 14.outubro.2022



 

Comentarios


  • facebook
  • linkedin

©2020 por Cérebro&Coração. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page