Semana passada, meu filho, alérgico à pó e à escola, cometeu uma infração grave na sala de aula: acometido por uma crise de alergia, ele deu um espirro. Foi discreto, mas o suficiente para a professora interromper a frase, os colegas lançarem sobre ele um olhar de horror, e o clima de suspense dominar a sala. Passado o susto, a professora retomou a frase interrompida e, atchim! Uma cadeia de espirros se sucedeu, disseminando gotículas e pânico na classe.
“Já para a enfermaria”, ordenou a professora.
O pequeno foi recebido por duas enfermeiras devidamente paramentadas. Enquanto uma metia um termômetro na axila, a outra começou com a lista das perguntas: “teve contato com alguém com Covid nos últimos quatorze dias? febre? diarreia? calafrios? dor de garganta? dor no corpo?”. Ele respondeu não para todas. A investigação continuou: “sente cheiro? gosto?” Sim e sim. Ele até tentou explicar, “eu tenho alerg...” mas o momento de estresse deflagrou nele uma tosse nervosa, o que tirou qualquer chance para maiores explicações. Fizeram o que o protocolo manda: mandaram ele voltar para casa até “os sintomas” desaparecerem.
Larguei tudo e fui correndo buscá-lo da escola em ritmo de ambulância. Coloquei a mão na sua testa, fiz as minhas perguntas, olhei bem para ele e intuitivamente concluí que estava tudo bem. Em casa, sem pó nem professor, a alergia cedeu. Ele trocou o uniforme por uma roupa de domingo, comeu (sim, sentiu o gosto de tudo), tomou sorvete, brincou e comemorou o dia de liberdade que ele conquistara sem nenhum merecimento.
Depois de meia hora foi criado um grupo no WhatsApp com as mães da série, sem mim, para tratar da Covid do meu filho. As mais ansiosas me mandavam mensagens no particular preocupadíssimas com a saúde do filho (delas). Gravei uma mensagem padrão explicando que estava tudo bem, agradecendo a preocupação.
Aproveitei o dia livre do meu filho e pedi para ele estudar para a prova do dia seguinte. Mas a ideia foi imediatamente abortada quando li o e-mail da escola informando que, de acordo com os protocolos, ele deveria permanecer em casa, buscar a avaliação médica e só retornar quando não apresentasse mais “os sintomas”. Que raios de sintomas eram aqueles que eles tanto insistiam?
Mesmo com a temperatura normal, nenhuma tosse, nenhum espirro, energia a toda, resolvi tirar a prova. Dois cotonetes gigantes nas narinas e um na garganta atestaram: negativo.
Liguei para o meu marido para comemorar o resultado, contando-lhe toda a história. Ele ficou furioso e disse que não se conformava com o que tinha acontecido. Tentei acalmá-lo dizendo que a escola agiu corretamente, pois era obrigada a seguir os protocolos para nossa própria segurança. Mas ele não estava emputecido com a escola, e sim com o nosso filho. “Que comportamento é esse? Nós o educamos tão bem, onde já se viu espirrar em plena pandemia! Ainda mais em um ambiente fechado.” Falou um monte: que colar na prova, ainda vai; socar o amigo, até dá para entender; falar um palavrãozinho ou outro, tudo bem; mas tossir, em plena pandemia, isso era um comportamento típico de um desajustado social. “De noite em casa vou ter uma conversa séria com esse menino. É desde cedo que a gente tem que ensinar as crianças a ter autocontrole, a ser proativas e não reativas. Isso vai ter consequências, sem eletrônicos por uma semana .” Eu tentei justificar, até para entender melhor se não se tratava de uma brincadeira de mal gosto, mas ele se exaltou ainda mais e me acusou de superprotetora e de estar estragando o pobre menino.
Mais mensagens de mães: “Ele tá melhorzinho?”, “Já saiu o resultado querida?” Tirei uma foto do resultado, grifei em vermelho e mandei para uma delas pedindo que encaminhasse ao grupo e que, por favor, me poupassem de mais mensagens tão carinhosas e preocupadas. Algumas se ofenderam e me cancelaram das suas redes sociais, outras tiveram a cara de pau de insistir e me questionaram se eu não tinha que repetir o exame.
Novo e-mail da escola: “Esperamos que seu filho esteja sob os cuidados necessários e se recupere bem. Informamos que somente será autorizado o retorno mediante atestado médico. A colaboração das famílias é muito importante para evitarmos o aparecimento de novos casos”.
Naquelas alturas, eu era o próprio Sr. K do “O Processo”, de Franz Kafka, em que o personagem vive uma realidade distópica e é capturado, interrogado, processado e condenado sem saber a razão.
Cedendo a pressões, dia seguinte levei meu filho ao pediatra. Ele examinou minuciosamente o garoto e disse que estava tudo bem, garganta normal, ausência de gânglios, ausculta limpa, saturação ótima. “Mas tem uma coisa”, o médico me alertou, o que me deu ao mesmo tempo uma preocupação e um alívio, finalmente eu teria uma razão para tudo aquilo, “cuide dessa unha encravada, isso pode dar problema depois.” Saí sem nenhuma receita de remédio e com o diagnóstico de uma unha encravada.
Finalmente, meu filho voltou para a escola hoje. Assim que ele chegou em casa, me contou que uma amiga de classe estava com dor de garganta e sentindo moleza no corpo. Imediatamente recebo um convite para participar de um grupo com todas as mães, sem a mãe da garotinha, é claro. Não apenas aceitei, como participei ativamente da revolta geral. Onde já se viu, em plena pandemia, sentir dor de garganta? Que educação esses pais estão dando a essa pobre menina desajustada?
Amei o texto!!! Genial!!!
"Onde já se viu sentir dor de garganta em plena pandemia?"