Com a primeira dose da vacina no braço, decidimos que era hora de retomar algumas atividades de lazer. Como o que mais nos faltou nesse ano foram viagens, oceanos e amigos, decidimos passar alguns dias em Paraty em boa companhia, todos comprometidíssimos em se cuidar. Na mala, além de duas caixas de máscaras descartáveis, algumas roupas sem uso desde a era pré-pandêmica. No porta-malas, um cooler tamanho GG com comidinhas prontas. “Sem restaurantes, sem lugares fechados”, foi esse o nosso pacto.
Na pousada, super charmosa, recebemos a chave do quarto encharcada de álcool, o que nos deixou seguros de que os protocolos de higiene estavam sendo seguidos. No quarto, mais álcool. Passamos em tudo: armário, mesa de cabeceira, banheiro, telefone, só faltaram as paredes. Foi estranho estar num quarto que foi ocupado por outras pessoas algumas horas antes, sabe-se lá carregando quais vírus.
No café da manhã vários dispensers de álcool em gel espalhados pelo salão, placas de uso obrigatório de máscaras, além de luvas descartáveis na entrada do buffet. “Que bom, estão mesmo seguindo os protocolos”, concluímos. Mas mal começamos a nos servir, passa por nós uma funcionária com uma máscara pendurada no pescoço para repor as frutas; depois chega o gerente, sem máscara, para inspecionar se as placas de usar máscara estavam devidamente afixadas. Um verdadeiro absurdo. E para piorar, os hóspedes que usavam luvas a usavam em uma só mão: na mão que segura o prato, metendo a mão descoberta nos pães, bolachas, frutas. Reprovamos essa falta de cuidado, mas a fome e a vontade de não se estressar no primeiro dia de viagem falou mais alto. E enquanto todos fingiam que os cuidados estavam sendo seguidos, a gente fingia que acreditava e comeu o que deu para engolir. Era isso ou ficar com fome e emburrados para o resto do dia. Saímos de lá prometendo denunciar a pousada, que a partir de então perdera todo o seu charme para nós.
Fomos ao passeio de barco. Máscaras, distanciamento, mãos limpas e tudo o mais que estamos cansados de ouvir. Na medida em que nos afastávamos da terra, vez ou outra nos permitíamos abaixar a máscara para sentir o vento no rosto. “Somos pessoas conscientes e responsáveis, estamos nos cuidando”, racionalizávamos. Depois do primeiro mergulho no mar, fizemos um combinado através de olhares: esquecer das máscaras enquanto estivéssemos no barco. “Estamos entre amigos, é só manter um distanciamento”, nos autojustificamos. Só que esse distanciamento também foi esquecido assim que o Seu João, o marinheiro, começou com suas incríveis histórias de pescaria. Nos sentamos ao seu redor e a cada história que ele contava nos aproximávamos um pouco mais um do outro. “Não tem problema, o homem vive no mar, é forte.”
Quando chegamos à pousada e recebemos as chaves marinadas de álcool, achamos aquilo um despropósito. “Que exagero, não vi nenhum caso de alguém que tenha pego Covid com uma chave”, comentei baixinho em tom de deboche, “mas se esse é o protocolo, sigamos o protocolo.” No quarto, não sei se por causa do sol ou por causa do mar, estávamos mais relaxados. Controle remoto na boca, escovas de dente largadas na pia, roupas no chão.
Dia seguinte demos um passo adiante: rompemos a promessa de não entrar em lugares fechados. “Só um sorvetinho, vai ser jogo rápido.” Fomos à melhor sorveteria da Cidade e, seduzidos pelas cores e variedades, encaramos uma fila, experimentamos vinte sabores com pazinhas entregues de mão em mão, e saímos lambendo nossos eleitos pela rua como se não houvesse amanhã.
No próximo café da manhã passamos batido pelo dispenser de álcool em gel. “Se ninguém usa, de que adianta usarmos?” Acompanhando a lógica dos demais hóspedes, usamos apenas luva na mão que segura o prato. Cumprimentamos o gerente-sem-máscara quando ele apareceu para inspecionar as placas e nos esbaldamos na comilança.
E assim os dias se passaram, nos acostumando a desacostumar com os cuidados que tínhamos nos acostumados a tomar durante um ano e meio.
“Temos que aproveitar a última noite! Vamos para aquele restaurante com música ao vivo?” Todos toparam na hora. Ficamos horas naquele ambiente. Comemos, bebemos, cantamos, mexemos no cardápio, tossimos, tossiram. Sem medo, sem culpa. Terminamos a noite na beira da piscina da pousada, programando a nossa próxima viagem. Voamos alto: Nova York, Barcelona, Jerusalém, Lisboa, contando com o milagre de que até dezembro estaríamos livres do vírus e das dívidas.
Na volta da viagem, no carro, as fichas começaram a cair. Fizemos uma retrospectiva tipo terapia behaviorista, nos condenamos por cada um de nossos descuidos e concluímos que se a gente não fosse a gente, a gente não se perdoaria. Mas nos perdoamos. Nos perdoamos usando racionalizações sem sentido, como costumamos fazer quando nos deparamos com nossos erros, pecados, deslizes e atos falhos .
Se me arrependo? Não sei. Foi bom fingir, pelo menos por um tempo, que o perigo não nos ronda e que a vida é bela. Se tivéssemos consciência ininterrupta do perigo que é viver, a gente não conseguiria suportar a vida.
❤️