Perder coisas me irrita. Perco tudo. Celular, chave do carro, celular, boleto para pagar, celular, aparelho de dente embrulhado no guardanapo, celular, caneta Bic - que, não entendo como, sempre vão parar no meu cabelo. Irritação nível dois quando alguém me chama de cabeça de vento na hora que eu já estou irritada tentando lembrar onde deixei o objeto perdido; passando para nível três quando a pessoa faz a pergunta inteligente “mas onde você perdeu?”. Isso me deixa tão impaciente que acabo perdendo o objeto, a classe e o amigo.
O WhatsApp é uma poderosa ferramenta de irritação. Mensagens de voz em grupo, por exemplo. Quem grava a mensagem tem plena consciência que vai irritar, até porque sempre começa se desculpando, mas sucumbe à preguiça de digitar. A irritação se torna aguda quando o locutor está comendo ou mastigando. Tem também aquelas mensagens de texto que vêm por etapas. Começam com um “oi”, seguido por um “tudo bem?”, que só vem depois da sua resposta de “oi”. Depois entra o “deixa eu te falar” para, decorrido esse cerimonial de abertura, explicar a que veio.
Sinto uma pontinha de irritação-inveja quando vejo alguém falar inglês com perfeição, sem sotaque, sabendo pronunciar corretamente as palavras though, tough, through e thought.
Irritação profunda quando a pessoa me confessa que seu maior defeito é ser ‘perfeccionista’. Raiva dessa imodéstia disfarçada e da mentira escancarada. Só imagino quais serão as suas maiores qualidades.
Me irrito quando alguém me mostra o braço para provar que seus pelos estão arrepiados depois de ouvir uma história ou uma música tocante.
Mesmo nível de irritação quando vejo pessoas lindas, bem penteadas, bem dispostas e falantes às sete da manhã. Confio mais nas pessoas descabeladas e mau humoradas a essa hora da manhã.
Sempre me aborreci com pessoas que estão permanentemente felizes. Aquelas que não se permitem nenhuma pontinha de tristeza. Mal sabem elas que determinadas camadas da alma só são acessadas com alguma dose de melancolia. São essas pessoas que condenam quando você não está plena, e que têm sempre um conselho ou uma solução mágica para tudo. Irritação-cansaço delas.
Acredito piamente que todos os seres humanos têm uma inteligência. Não me refiro da inteligência QI, mesmo porque pessoas com um coeficiente alto (seja lá o que isso signifique de verdade) também podem ser burras. Não usar a inteligência é negligenciar, é ter preguiça, é não querer. Ser burro é uma opção. Ser burro, portanto, beira um mau-caratismo. Me irrito com essa escolha.
Tenho vontade de gritar quando vejo alguém abrir uma caixa de bis e comer um ou dois e se satisfaz. A pessoa come um bombom e meio, embrulha a metade que sobrou no papel e fala que está cheia. Tolerar isso está acima das minhas forças empáticas.
Me irrito com regras como as do impedimento no futebol e do sistema das eleições americanas. Nunca vou entender, por mais que na hora eu entenda.
Usar a forma diminutiva faz parte de alguns ofícios. “Relaxa o bracinho, é só uma picadinha, dá uma respiradinha que não vai doer nadinha”. O melhor é obedecer às ordens e tentar fingir que está tudo certo, antes que seu braço se enrijeça de raiva. E na saída, não se esquecer de retribuir ao carinho com um “obrigadinha, querida”.
E quando você faz uma bobagem na vida e, enquanto se culpa pela escolha errada e sofre as consequências, ouve em tom profético “Tá vendo? Eu te avisei!”. Irritação-tortura ouvir isso quando se está no fundo do poço e, mais ainda, saber que para esse seu mui amigo o mais importante de tudo é ter razão.
Me atrapalha saber que push é empurrar e pull puxar. Simplesmente não concordo.
Fazer a unha e lascar o esmalte fresco, cumprimentos de mãos moles e úmidas, pessoas que se levam muito à sério, pipoca presa nos dentes, expressões contemplativas diante de um quadro inexpressivo, errar o ângulo do furador de papel, “provocar uma reflexão”, falta de senso de humor, super bonder colado nos dedos ...
Mas a maior das irritações acontece mesmo quando, no auge da sua irritação, alguém tenta acalmar você e não deixa você curtir essa emoção tão restauradora.
Devo concluir esse interminável rol, por fim, reconhecendo que quem se irrita com tantas coisas e pessoas, se irrita sobretudo consigo mesma.
E embora meu maior defeito não seja ser perfeccionista, sim: eu mostro os pelos do braço quando me arrepio, às vezes escolho ser burra, já dei minhas brisadas diante de quadros inexpressivos, vivo tentando limpar a pipoca nos dentes com irritantes manobras buco-linguais e um dia vou estar lindamente arrumada, com uma enorme disposição às sete da manhã, a ponto de causar raiva a qualquer um.
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