30.agosto.2020

Interior de um avião.
21h10m
Edu está sentado na sua poltrona, ouvindo música com fones de ouvido. Camila chega atrasada, faz esforço para encaixar sua mala acima do assento.
- Aqui é a fila 17? - pergunta Camila.
Edu tira seu fone incomodado.
- Oi? Ah, sim, 17D – responde Edu, recolocando o fone em seguida.
- O meu é o 17A. Deixa eu me ajeitar.
Camila deixa cair uma sacola perto dele.
- Desculpa te incomodar, você pode pegar para mim por favor?
Edu, sem tirar o fone, pega e entrega para Camila secamente.
- É o meu lanche, odeio comida de avião – explica ela.
Camila limpa tudo com muito álcool gel: assento, braços, tela. Coloca um lençol em cima da poltrona antes de se sentar, troca o travesseiro do avião pelo seu. Duas poltronas vazias os separam, seguindo as regras de distanciamento. Avião decola.
Camila pega um livro grosso e veste seus óculos de leitura. Edu tenta disfarçadamente ler o título.
- Minha música tá alta? – pergunta um Edu mais pacífico.
- Não, fica tranquilo.
Camila pega um pacote com comida da sacola, passa álcool gel novamente em tudo, tira a máscara e dá uma mordida. Edu olha pela primeira vez o rosto dela, olhos brilham.
- Torta de maça com canela? – pergunta Edu.
- Bom olfato o seu.
- Sou um bom gourmet, amador, mas dos bons, modéstia à parte.
- Cozinha o que?
- Estou na fase dos risotos. De tudo o que você pode imaginar. Funghi, limão siciliano, carbonara, alcachofra, até risoto doce de morango eu inventei.
E assim começou a conversa, com assuntos fáceis. Falam sobre lugares, gostos pessoais, filmes e ideias. Nas pausas das conversas, Camila lê e Edu ouve música; o tempo vai passando e eles não se esquecem da presença do outro.
22h50m
Comissária oferece almoço para Camila
- Raw Vegetable Meal, Miss?
- Yes – responde Camila à comissária - but I´m not hun...
- Pode pedir para trazer – interrompe Edu sussurrando - eu como o seu. Estou morrendo de fome, e a minha vai demorar. A comida dos especiais sempre chega bem antes da dos simples mortais.
- Yes, please – responde Camila abrindo sua mesinha.
- Eu não vivo sem carne – Diz Edu. Mas vou comer o seu prato como aperitivo. Isso se não for só um aspargo cozido.
- Eu não como carne faz vinte anos. Você tem consciência que para você comer a sua carninha, um animal sofreu e foi morto impiedosamente?
23h:30m
Edu recebe a comida. Camila dá para ele o álcool gel.
Depois que Edu termina de jantar, Camila oferece alguma coisa para Edu
- Quer?
- Não obrigado, estou satisfeito. Já comi a sua comida e a minha.
- Não é comida – rindo - é máscara descartável. Tem que trocar de três em três horas.
Edu aceita a máscara e agradece.
- O que te faz viajar no meio da pandemia além de tentar convencer os outros da barbaridade de comer animais?
Camila conta que foi convidada para ser a representante brasileira numa conferência de moda, convite irrecusável apesar dos riscos de viajar.
- E vai ter moda em 2021 fora os moletons de quarentena?
- Que ideia mais pessimista. Mais do que nunca a gente precisa da moda na vida. A moda não se resume em panos costurados. Ficar de pijama o dia todo em casa, comendo carne (irônica), pode fazer bem durante dois ou três dias no máximo. Se passar disso, vira estado de espírito. As pessoas precisam criar, sempre, e a primeira criação do dia acontece na escolha da roupa de manhã. Isso afeta mais o nosso dia do que você pode imaginar.
- Peraí, não seria o movimento inverso? Eu escolho a roupa de acordo com o meu estado de espírito.
- Tem razão também, é uma via de mão dupla. A cultura imaterial afeta diretamente a material e...
- A gente nem se apresentou. Prazer, Edu.
Estende a mão para cumprimentá-la entre as duas poltronas vazias, esquecendo-se da pandemia. Ficam sem jeito e se acotovelam.
- Prazer, Camila. E você? Pelo que está arriscando a vida viajando na pandemia?
- Nada especial.
- Como assim? Não existe isso. A gente viaja para um lugar por um propósito. Você tem alguma missão secreta que não pode revelar?
- Tenho até vergonha de falar, depois da sua fala tão incisiva e autoritária: “a gente viaja para UM lugar por UM propósito.”
- Não exagera, sou zero autoritária. Mas algum propósito você deve ter. Essa mulher aqui da frente, por que será que ela está viajando?
- Ela é uma cientista pesquisadora da Fiocruz, indo para se atualizar sobre as vacinas. Esse aí, sentado na janela, trabalha com joias e vai comprar um diamante de 200 quilates para uma cliente rica e ansiosa. Aquele de cinza é um executivo que trabalha com irrigação no Nordeste e vai oferecer tecnologia para os gringos. A da primeira fila com os pés para cima ...
- Tá, não vai me contar. Trabalho? – insiste Camila.
- Não.
- Férias? Hmmm, não. Não tem férias em plena quarentena. Já sei. Vai se encontrar com a amante.
- Passou longe! Eu tenho cara de ter amante?
- Desculpa, não quis ofender sua esposa.
- Você está querendo me perguntar seu eu sou casado? Ok, não sou casado, consequentemente não tenho amante. Não tenho namorada e sou hétero.
Pausa, ambos sem graça.
- O meu propósito não é exatamente um propósito – explica Edu um pouco sem graça. Eu tinha milhas. Estavam vencendo. Meu irmão mora em Nova York. Posso trabalhar de lá e ... entendeu?
Camila ri desse “propósito”. Continuam a conversa, cada vez mais interessante, atingem uma certa intimidade ao exporem seus pensamentos e sentimentos, sem a preocupação de agradar. Afinal, não tinham nada a perder e provavelmente nunca mais teriam a oportunidade de estar tanto tempo juntos, sem testemunhas, sem interferências senão as das comissárias.
2h30m
Apagam-se as luzes do avião.
- Bom vou te deixar dormir.
- Magina, não tô com sono – responde Camila bocejando.
Camila coloca uma máscara descartável em cima dos olhos. Depois de alguns minutos ela levanta de lado a máscara em um olho e dá uma olhada para o lado. Edu ouve música
- Que tipo de música você escuta?
- Quer ouvir?
- Sim claro. Adoro música. E o gosto musical diz muita coisa da pessoa.
- Já sei, igual a moda, gastronomia ... o material no imaterial ou vice-versa.
- Exato, aprendeu bem.
- Que lindo!
- Passei no teste?
- Admito que com louvor.
- Agora me fala, o que você mais gosta e o que menos gosta?
- Como assim?
- Na vida, no mundo. Vale qualquer coisa.
- Assim, na lata?
- Sim, agora é a minha vez de te investigar pelos meus parâmetros
- Amo praia; odeio frio. Amo Almodóvar; odeio filme de terror. Amo trabalhar e viajar; odeio trabalhar muito a ponto de não conseguir viajar. Amo abóbora; odeio coentro. E odeio os meus pés.
- Já vi que você é intensa. Pedi para você dizer o que gosta e não gosta e você já foi revelando o que você ama e odeia. Visceral! Escorpião?
- Errou. Tem mais onze tentativas.
- Aquário ou leão. Um dos dois, tenho certeza.
- Peixes! Agora é a sua vez, o que você gosta além de não perder milhas aéreas?
- Gosto de jogar tênis; Não gosto do calor; Adoro música, mas gosto também do silêncio. Não tenho nada contra os meus pés. Gosto de abóbora também.
- Libra!
- O que? Ah, Uau, de primeira. Você me assusta com essa bruxaria!
- Sou uma bruxa do bem.
Mais assuntos, filosofias e risadas. Ouvem reclamações de outros passageiros pelo barulho, o que os faz pular as poltronas vazias. Sentam-se ao lado e os assuntos se multiplicam. O magnetismo vence o sono.
4h15m
- Posso te pedir uma coisa? – pergunta Edu. Tira a máscara para eu apreciar o seu rosto?
- Não seja abusado.
- Só um pouquinho vai.
- Sei sei, homens sempre com esse papo de ‘só um pouquinho’...
- Só o nariz, então.
- Ih, conheço esse papo. Começa com o nariz, depois vai pedir para ver a boca...
- Relaxa. Prometo que não vou forçar nada.
- Mas aqui na frente de todo mundo?
- Tá todo mundo dormindo, olha só.
- Tá, mas só se você tirar também.
Camila finalmente cede, tira a sua máscara devagar. Descobre parte de seu queixo, depois boca, depois uma bochecha, a outra, o nariz, revelando, por fim, a nudez de seu lindo rosto.
Depois, tomam um cafezinho, já que não podem fumar no avião, e perguntam-se:
Foi bom pra você?
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