Nada como um domingo para colocar a leitura em dia. Pego o livro, me recosto na poltrona e ajusto a melhor luz. Maravilha. Onde eu parei mesmo? Retrocedo duas páginas do marcador para retomar a história. O WhatsApp vibra. Tento ignorar, mas é do grupo família, vai que é alguma coisa importante. Nada de importante, como sempre. Só um vídeo. Volto para a leitura. A curiosidade me chama para um clique no vídeo, vai que é alguma coisa interessante. Nada de interessante, como sempre.
Retrocedo mais uma página para retomar a retomada da história.
Toca o sino da igreja. Já meio-dia? Vou rapidinho à cozinha para organizar o almoço e já volto para meu livro. No caminho me deparo com os meninos se socando. Separo a luta e os levo para o quarto pelas orelhas. Que chiqueiro é esse? Quinze minutos para você arrumarem o quarto, senão adeus jogos eletrônicos.
(Retrospectiva: Abri o livro; entrou o WhatsApp; abri o vídeo; tocou o sino; lembrei do almoço; separei a briga; mandei os meninos arrumarem o quarto... Quanto trabalho para ler um livro!)
Indo para a cozinha, passo pelo meu computador justo na hora que ele solta um sinal sonoro. Só uma olhadinha na caixa de entrada e já já vou para a cozinha. Vai que é alguma coisa importante. Nada importante, como sempre. Mas já que estou lá, sento-me para conferir os demais e-mails: 90% são promoções e ofertas, 5% são confirmações de compras - um para o recebimento do pedido, outro para a aprovação do pagamento, outro para a previsão de entrega e outro para a nota fiscal - , sobrando poucos para responder. Começo a digitar e fico na dúvida se o correto é usar “ao encontro de” ou “de encontro a”. Peço ajuda ao Google. Antes mesmo de começar a ler, surge na tela um quadradinho com o anúncio do tênis que eu procurava. Sou capturada pelo algoritmo. Me levanto para pegar o cartão de crédito. Que bolsa desarrumada é essa? Despejo tudo numa mesa para organizar: protetor solar vencido, máscaras descartáveis, sete canetas, óculos de sol, óculos de leitura, lixa de unha. Minhas unhas, socorro! Ligo para a manicure, para depois pegar meu cartão de crédito, comprar o tênis, voltar ao Google, responder ao e-mail, ir à cozinha, checar o quarto dos meninos e voltar à minha leitura.
Chega de dispersão! Coloco o celular no silencioso, mas tem a luz que me chama através de letras que gritam “você não imagina o que aconteceu amiga, ligue quando puder, beixxxo”. Óbvio que largo tudo e ligo na hora. Enquanto ela me conta os detalhes, entra uma ligação de vídeo. Pauso a amiga, arrumo o cabelo e atendo. Pausa na ligação de vídeo para avisar a pausa da ligação de áudio, mas a amiga cansou de esperar. Me livro da ligação de vídeo e, quando começo a discar, toca o interfone. Desço na portaria para buscar as compras.
(Retrospectiva: Abri o livro; entrou o WhatsApp; abri o vídeo; tocou o sino; lembrei do almoço; separei a briga; mandei os meninos arrumarem o quarto; chequei os e-mails; busquei ajuda do Google; entrou o tênis; fui pegar o cartão de crédito; arrumei a bolsa; liguei para a manicure; liguei para a amiga; atendi a ligação de vídeo; desci na portaria ... Quanto trabalho para ler um livro!)
Não dá para ficar sem arrumar as compras do mercado. Aproveito para esvaziar a geladeira e guardo as frutas. Meus olhos encontram o bolo. Depois as castanhas. Depois o queijo.
Mastigando, volto para o computador, mas sou interrompida pelas crianças que pedem o almoço. São 14:30h, daqui a pouco é a hora do jantar, fritem um ovo e comam uma fruta, queridos. Me sentindo culpada, procuro uma receita especial para o jantar. O tênis volta a aparecer e me olha como um cachorro carente. Antes de fechar a compra, entro no site do banco para checar o extrato e vejo que o reembolso do médico não entrou. Ligo furiosa para a seguradora e, depois de uma longa espera musicada, “desculpe, senhora, essa informação só pelo site mesmo, algo mais que eu possa estar lhe ajudando?”. Desligo o telefone, abro o bloco de notas e escrevo: processar seguradora, entrando na lista das cento e oitenta tarefas inacabadas.
Abas de janelas se espremem na parte superior da tela do computador, se misturando com as janelas permanentes: Instagram, Facebook, LinkedIn, Twitter. Entra um mosquito. Tento uma chinelada mas o inseto insiste. Me divido entre o mosquito, as castanhas, os e-mails, o bolo, o tênis, a receita do jantar, a história inacabada da minha amiga, a gramática correta, o quarto dos meninos, o processo contra a seguradora.
(Dispenso a retrospectiva... Quanto trabalho para ler um livro!)
Tantos focos periféricos nauseiam a minha mente. Desta vez, sou eu que retrocedo. Separo o que é urgente, o importante e o supérfluo.
Fecho as janelas do computador, passo pelo quarto dos meninos sem reparar a bagunça, resolvo o jantar com um delivery, risco da lista ‘processar seguradora’, esqueço do tênis, devolvo o queijo na geladeira, mando um emoji para minha amiga. Me fecho em mim e passo uma chave interna para nem zumbido de mosquito interferir. Desligo o celular: nem som, nem luz: quero o som e luz que vem de dentro.
Abro o livro. Onde eu estava mesmo na história? Abro a página 1.
hahahahahahhaha a minha cara essa
acredita q li sem perder o foco????