14.setembro.2020

Foto: Stanislav Aristov - Matchstick Art
Dormi com a imagem das queimadas no Pantanal e o laranjão da Califórnia que acabava de assistir na TV. Às 2h30m da manhã meu marido me chama:
- Acorda, levanta, temos que descer agora.
Ofegante, nervoso, seu chamado passava uma confiança sobre a qual, mesmo adormecida, eu sabia que não era caso de questionar. Obedeci, venci minhas pálpebras pesadas com a certeza de estar atrasada para o nosso compromisso matinal. Mas a sensação de ter dormido pouco para uma noite inteira desmentiu a minha certeza inicial. Era, de fato, começo de madrugada e eu ainda nem tinha começado a sonhar.
Quando os meus neurônios começaram com suas sinapses, raciocinei: “Ele falou descer? A gente praticamente não está saindo de casa desde que começou a quarentena.”
A movimentação na casa me indicou que havia um problema no ar. Respirei fundo e senti um cheiro de fumaça. Sim, havia um problema no ar, literalmente no ar.
Levantei da cama confusa e senti um calor, sem entender se por uma bagunça hormonal interior ou se pela chama imaginária vinda do Pantanal. Lavei o rosto; foi a hora que a ficha caiu. Vi com meus olhos, experimentei na pele, senti o gosto, enfim, cheirei com todos os meus sentidos o fogo vindo de um lugar muito próximo. Mais precisamente, do andar imediatamente abaixo.
Fui correndo conferir o ninho dos meus filhotes. Estavam bem e isso era tudo o que importava no universo naquele momento.
Confusos, os meninos se vestiam sem saber nem para quê, nem como, nem para onde. No fundo, adolescente tem uma sabedoria de, nas horas imperativas, não questionar e se portar como uma criança obediente, ou como adulto, se é que existe alguma diferença.
Saímos apressados pela porta de casa, esquecendo-nos das máscaras e do álcool gel (afinal, um perigo maior eclipsa os perigos menores). Os míopes esqueceram seus óculos, os friorentos, os seus casacos. Eu, friorenta e míope, me esqueci dos dois, e apesar disso, enxergava perfeitamente bem e não sentia frio.
Descemos as escadas, seguidos pelo zelador, que vinha atrás de nós no mesmo passo. Ele apertava as campainhas, andar por andar, porém sem pressão suficiente para tirar os meus vizinhos de seus travesseiros. Seguimos solitários na escada escura e silenciosa. No longo trajeto da escadaria um dos meus tagarelava assuntos aleatórios. Foi a forma que encontrou para lidar com o seu medo, contrastando com os outros que permaneciam num silêncio militar.
Térreo. Terra. Terra-firme. Alívio.
A tremedeira das minhas mãos e pernas foram substituídas por um súbito e insensato senso de humor, coisa não rara de acontecer comigo, provavelmente pela mesma razão da tagarelice do meu pequeno. Vontade de rir. Rir de nada. Rir de tudo e agradecer que estavam todos bem.
Olhei para cima e contei os andares. “Onde estão os outros moradores? Vamos desçam!” Aos poucos apareciam rostos assustados e sonados. Não faltaram gatos, cachorros e periquitos amparados pelos seus donos.
A situação improvável de estar na rua às 3h da manhã me deu uma sensação de liberdade, de desprendimento, de regras rompidas, afinal aprendemos que noite é hora de dormir e que ruas vazias, de noite, são perigosas. Só que não. Estava eu ali, como uma adolescente, vivendo intensamente os meus sentimentos polarizados.
Foram quatro carros de bombeiros e outras viaturas. Chegavam aos poucos, com suas sirenes escandalosas e ao mesmo tempo reconfortantes. O vermelho-nervoso dos carros nos pedia calma. Os bombeiros, nossos heróis, sabiam exatamente o que fazer, com rapidez e destreza. E com um grande respeito por todos nós.
Desceram, enfim, todos os moradores. Cada um se posicionou no melhor espaço que encontrou para acompanhar a ação.
A loira bonitona do décimo-primeiro andar, de pegnoir com bobes na cabeça e creme azul turquesa no rosto, revelou a todos que a sua beleza era resultado de uma boa investida noturna e, também, que quem é chique é chique até dormindo. O escritor do quinto segurava duas malas nos braços, como que protegendo o que tinha de mais importante na vida. Meu olhar de raio X dizia que eram páginas com palavras escritas; para outros, era dinheiro e escrituras de imóveis. O adorável garotinho do décimo-quinto, a quem essa noite passaria desapercebida, dormia um sono profundo no colo da mãe. As famílias se somavam aos subgrupos de outras famílias, unindo-se naturalmente aos sobrenomes mais íntimos. Os cachorros, que provavelmente não se conheciam vizinhos, entreolhavam-se com uma vontade de brincar.
A fumaça ainda saia pela janela.
Não me abandonou, nem por um minuto, a vontade de consolar, apoiar e abraçar os moradores do apartamento incendiado. Não sabíamos como expressar o tamanho da solidariedade que queríamos transmitir. Abrir a nossa casa para eles era pouco. Permanecemos desolados juntos com eles, assistindo pelo lado de fora a lenta e cruel ação do fogo.
Experimentamos cenas de filmes. Filme de catástrofe, filme sombrio, filme de ficção, filme de suspense, filme romântico. Até as Três Marias apareceram no céu poluído para participar da cena.
Quando o relógio bateu as 5h30, enquanto o fogo do sol ameaçava surgir, o incêndio foi controlado.
Sem coragem de pegar o elevador, e a fim de sentir aos poucos os estragos, subimos de escada. A mesma que na descida parecia a escada da Cordilheira dos Andes, na subida pareceu ter encolhido alguns degraus. Sujeira, muita água, cheiro forte.
E veio a boa parte do filme, graças a D’us: nossa casa estava intacta tal qual a deixamos algumas horas antes sem saber o que esperar. Apenas um cheiro forte de coisa queimada e muita fuligem no ar. Os olhos e as narinas ardiam. Tiramos os sapatos para sentir o conforto de estar dentro de casa. Imediatamente sentimos o calor do piso dos quartos na sola de nossos pés, o fogo parecia ainda estar lá, aceso. Lembrei das patas das onças queimadas no Pantanal, do cheiro do ar na Califórnia e pensei o quanto nossos incêndios diários são pequenos.
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